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Reconfigurar a economia





Crónica de João Reis

Licenciado em Economia e doutorando em Finanças. Ativista do Climáximo.

Tanto pela taxa de fatalidade do COVID-19, que aparenta ser elevada, como pelo isolamento social necessário para o mitigar, que trará inevitáveis consequências económicas, os paralelos da crise pandémica atual com a crise climática são incontornáveis. Podemos compreender a relação entre estas crises analisando algumas questões.


Em primeiro lugar, o extrativismo está ligado a ambas os problemas: podemos apontar como principal causa da crise climática a exploração extrativista de combustíveis fósseis; no caso da crise pandémica, o extrativismo que resulta na exploração industrial de ecossistemas potencia o contato com animais, os quais são, hoje em dia, a maior fonte de transmissão de novas doenças (embora seja de ressalvar que ainda não foi completamente provada a origem animal no caso da COVID-19). Em segundo lugar, ambas as crises se pautam por uma urgência da ação, embora alguns cheguem a fazer a triste afirmação de que a luta climática deixou de ser importante face à pandemia. Em terceiro lugar, há a importância crucial da planificação económica e social: esta é tão necessária para lidar com a COVID-19 como será para efetuar uma transição ecológica justa. Por fim, existe a questão da quebra da normalidade e o surgimento do paradigma de crise: a pandemia gera consequências sociais e económicas nefastas – o isolamento, a rutura da organização social e a paragem de atividades regulares – e a crise climática poderá gerar, entre outras consequências catastróficas, secas que farão colapsar a produção de alimentos e cheias que destruirão cidades.


Pensando em termos económicos, é inevitável estabelecer uma relação de base entre as propostas que nos são apresentadas pelo capitalismo para a resolução de um e outro problema. No caso da crise climática, é-nos apresentada a eco austeridade, através de discursos como: “Nós podemos fazer uma transição energética, mas esta terá que ser acompanhada de uma redução da qualidade de vida.” Agora, o capitalismo oferece-nos a quarentena-austeridade: “Nós podemos efetuar distanciamento social, mas a conta desta paragem será paga com austeridade.”.


Em ambos os casos, podemos falar de crises intimamente ligadas ao capitalismo, embora de maneiras diferentes. As alterações climáticas surgem devido à queima de combustíveis fósseis, que é uma parte essencial da engrenagem que garante os crescentes lucros de vários setores económicos. No caso do COVID-19, e no movimento inverso, a paragem necessária para impedir a propagação descontrolada da pandemia irá gerar uma crise económica sem precedentes. O colapso económico que se encontra em marcha, num e noutro caso, é-nos apresentado como um dado adquirido, uma consequência da única forma possível de organizar o mundo. No entanto, está intimamente ligado à forma como a nossa economia está desenhada, imbuída de fragilidade, criada como efeito secundário de um sistema que privilegia o lucro acima de tudo.


A fragilidade do sistema passa pela criação de cadeias de produção altamente complexas e descentralizadas. Se a complementaridade entre regiões é uma ferramenta importante, a sua propagação inconsequente tem repercussões negativas. Podemos compreender a irracionalidade das cadeias de produção globais analisando alguns casos: por exemplo, parte o esparguete consumido no Reino Unido é fabricado em Itália, a partir de trigo produzido no Canadá; ou, passando a exemplos mais complexos, há telemóveis com software criado na Coreia do Sul, chip desenhado no Estados Unidos, materiais-base extraídos da Austrália e do Chile, manufatura das componentes executada na Tailândia e montagem final feita na China. Os casos que existem na economia moderna são imensos, sobre os mais diversos bens e serviços. As linhas de produção tornaram-se mais complexas ao longo dos anos, correspondendo a lucros crescentes das multinacionais que as produzem. Esta complexidade da malha produtiva tem como consequência que a falha de uma das partes se generaliza rapidamente num colapso de toda a cadeia.


A ultra financeirização é outra componente problemática do capitalismo, tanto impactante quanto supérflua. Se, em tempos de estabilidade económica, permite a geração de lucros altíssimos, tem um elevado potencial de colapso em tempos conturbados, podendo arrastar toda a economia consigo. Tendo passado por ciclos de maior e menor intensidade durante a história do capitalismo, a lógica da ultra financeirização é hoje um elemento estruturante da economia mundial: começando pelas empresas modernas, sempre dependentes de altos níveis de financiamento, arriscando entrar em falência a qualquer falha de receita; passando pela especulação pura, cujos prejuízos em tempos de crise já em 2008 quase levaram a economia mundial ao colapso; chegando a ter contornos geopolíticos, com Japão e China a deter níveis colossais de dívida federal americana; até negócios online como o da empresa Airbnb e similares, cujo desenvolvimento levou à concessão massiva de empréstimos para a obtenção de imóveis, cujo pagamento dependeria de hóspedes que nunca chegaram.


Estas duas componentes do capitalismo moderno – cadeias de produção altamente complexas e descentralizadas e ultra financeirização – são essenciais para alimentar a sua geração de mais valia. São as obras dos arquitetos que agora nos apresentam a austeridade e a miséria como as cruzes que temos de carregar por termos decidido não sacrificar os mais vulneráveis às consequências do coronavírus.


É nos planos desses arquitetos que se encontra a “ideia matriz” de que 99% da população tem de pagar pelos falhanços do sistema por si montado. Eles tentam, para já, pôr a antiga economia falhada no congelador, através da distribuição de bazucas de dinheiro público, para voltar o quanto antes ao “business as usual”. “Business as usual” que significa atravessar uma nova onda de flagelo social, com despedimentos em massa, despejos de quem não é mais capaz de pagar habitação, fome de quem deixa de ser capaz de pagar as contas do supermercado. Isto, claro, sem que os verdadeiros responsáveis deixem nenhuma crise por aproveitar, lapidando serviços públicos, direitos laborais e prestações sociais.

Quem luta pela Justiça Climática tem de conjugar esta crise económica com a agenda climática: conduzindo quem perde os seus postos de trabalho em setores agora mortos para setores como fontes de energias sustentáveis e dos necessários cuidados; garantindo um paradigma que não permita que ninguém fique sem um teto onde dormir; promovendo a decisão coletiva nos espaços de trabalho para não mais permitir situações de abusos laborais; reconfigurando as fontes de abastecimento de bens essenciais, como alimentos e medicamentos.


As propostas apresentadas pelo capitalismo para a resolução de crises têm de ser rejeitadas. Não podemos permitir que dinâmicas de troca da sustentabilidade por direitos essenciais conduzam o discurso e a política.


A crise económica que se avizinha será tanto mais dura quanto menor for o combate às propostas apresentadas pelo capitalismo. Os governos estão-se a mobilizar para configurar a economia. A luta política trará ao de cima se esta reconfiguração será no sentido de perpetuar a agenda de lucros, ou no sentido de uma política social com uma transição justa, que ponha um travão na sequência de crises que nos levarão ao abismo.




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