O cinema é a forma de arte onde mais conseguimos partilhar e sentir, intimamente, a solidão de outra pessoa e Oslo, 31 de Agosto segue esta ideia na perfeição.

Crónica de Afonso Abecasis
Rubrica Fita Curta
Nunca me disseram como as amizades se dissolvem. Até que sejamos estranhos, amigos só no nome.
O brilhante e comovente filme Oslo, 31 de Agosto,de Joachim Trier étanto sobre o seu protagonista - o toxicodependente Anders (Anders Danielsen Lie) - como é sobre a sua geração e a sua cidade. Anders é a nossa janela para este mundo e, enquanto ex-traficante de droga, uma das pessoas mais ligada às suas ruas, embora passe todo o filme a sentir-se o mais distante possível. Quando este regressa à cidade num dia de Agosto, vem de uma reabilitação de dez meses. A ocasião especial é uma entrevista de emprego, mas ele aproveita-a para se reunir com velhos amigos e familiares, num esforço para recomeçar ou dizer adeus - algo que ainda não decidiu, pois ainda nessa manhã tentara suicidar-se, acabando por mudar de ideias. No decorrer da história, ficamos impacientes por saber que destino irá ele escolher.
O filme abre com uma montagem de imagens históricas da cidade, sobrepostas com uma panóplia de vozes anónimas contando pequenas anedotas sobre a vida em Oslo: isto anuncia que o filme tanto é uma crónica de uma cidade e da sua mudança, como é da viagem deste homem através dela. Estas vozes relatam-nos as histórias de infância, amizades, adolescência e maturidade com uma certa melancolia. A câmara vagueia por ruas já vazias ao anoitecer. As anedotas referem-se a algo que outrora já foi, que entretanto se perdeu. As estações mudam, o tempo passa, as pessoas envelhecem, e ainda assim a cidade continua a ser uma constante: as ruas permanecem, mesmo que os edifícios e as pessoas mudem. E enquanto Anders caminha pelas ruas durante aquela tarde, também este nos conta anedotas da sua infância e dos seus pais, ligando-o profundamente ao que Oslo é.
A verdade é que Anders passa este dia 31 tentando que as pessoas mais próximas de si falem com ele e o ouçam. Visita pela primeira vez o seu amigo Thomas (Hans Olav Brenner), um professor universitário e ex-colega, agora casado e com filhos, com quem tem uma conversa mais aberta e honesta. De seguida tenta ver a sua irmã, mas esta manda a namorada no seu lugar. À noite, Anders encontra-se na festa da ex-namorada Mirjam (Kjærsti Odden Skjeldal), num momento privado e íntimo no terraço.
Tanto Thomas como Mirjam partilham, de forma franca, o estado das suas vidas. Thomas conta a Anders as tensões nos pequenos afazeres do dia-a-dia: o seu bebé em crescimento, a companhia que mantém, as suas palestras, a sua vida sexual em declínio e o quão isolado se sente em relação aos outros. Expressa a sua vida com uma certa tristeza e resignação, repleta de trivialidades nas quais Anders só vê algo por admirar. Já Mirjam desabafa sobre a sensação de desconexão perante as suas amigas que desapareceram para a maternidade. Quando a conversa flui, é como se ainda fossem todos amigos. Mas quando acaba, por culpa de como Anders deixa as coisas, perguntamo-nos se as amizades se dissolveram. As coisas estão particularmente más para Anders — como toxicodependente, fez coisas egoístas para alienar os seus amigos e família — mas parte dessa experiência de perder amigos em vinte ou trinta anos é apenas um sintoma da vida: Thomas e Mirjam também estão a passar por isso.
E é a partir deste ponto que o filme aborda um dos seus temas mais importantes: viver numa cidade, como Oslo ou outra qualquer, é viver num sítio onde inevitavelmente algumas amizades desaparecem por causa da distância emocional e não da distância física. O que Oslo, 31 de Agosto faz é ligar essa sensação de perda a um passo normal da vida, à medida que crescemos e envelhecemos com a própria cidade. Andar pelas ruas das cidades onde cada um de nós viveu é como caminhar pelos marcos das nossas vidas: os prédios, os elétricos, as estradas e as praças, os restaurantes ou os jardins guardam em si as histórias das nossas memórias. Joachim Trier faz com que cada local que Anders visite tenha um significado profundo, seja um banco num parque ou um simples terraço - lugares que ressoam a um significado para lá do físico.
O cinema é a forma de arte onde mais conseguimos partilhar e sentir, intimamente, a solidão de outra pessoa e Oslo, 31 de Agosto segue esta ideia na perfeição. Numa emblemática cena em que Anders passa um tempo sozinho num café, a ouvir diferentes conversas sobre esperanças, sonhos, traições - sobre um conjunto de pessoas que têm um propósito e uma sensação de pertença que ele anseia, mas não partilha - conseguimos aperceber-nos desta visão da cidade enquanto um sistema vivo, com todas as vidas e conexões reunidas num só lugar e do quão deprimente pode ser se não fizermos parte disso.
A verdade é que Anders nunca está totalmente presente – isto reflete-se no facto de não ter sequer uma casa própria em Oslo. O seu distanciamento é expresso nos seus movimentos e na edição do filme: em cada cena é como se o protagonista já estivesse pronto para se ir embora, afastando-se dos seus amigos antes de partir, caminhando para o lugar seguinte antes da conversa ter terminado, mentalizando-se já da despedida. Ele não consegue estar no momento e, conforme a história se desenrola, a desconexão fica cada vez maior.
Este filme é um comovente e distinto retrato do vício, da droga e do incrível e difícil caminho para a recuperação. Mas o que diferencia Oslo, 31 de Agosto de outros filmes é a maneira como este entrelaça o que nos é pessoal com a cidade. Joachim Trier mostra-nos como esta história está ligada à história da cidade e esta, por sua vez, estáligada às histórias daqueles que nela vivem. Vivendo também numa grande cidade como Lisboa, há esta sensação de inércia de morar num lugar de onde ninguém sai, mesmo quando as pessoas se afastam e o que nos resta são os seus nomes e algumas memórias.
A maneira como as amizades se dissolvem, as pessoas crescem e o mundo muda é filtrada de forma diferente e de uma maneira específica quando vivemos numa cidade –ela é moldada pela forma como a própria cidade muda. Ao tentar revelar o que isso significa para alguém que vive em Oslo, Trier encontrou algo mais universal sobre a vida urbana. Muitos filmes celebram cidades, seja Before Sunrise e Viena ou Amélie e Paris, mas poucos conseguem mostrar a atração e a alienação num mesmo panorama. Oslo, 31 de Agosto vê estes dois lados, onde aquilo que nos é apresentado esconde aquilo que evitamos saber, mas que faz parte de todos nós quando crescemos: a separação e a despedida daqueles com quem vivemos.
