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Algumas notas sobre crise ambiental e economia em tempos de pandemia

Surgirão novos espaços de oportunidade, que poderão ser aproveitados para a afirmação e construção de alternativas. O mundo pós-pandémico será seguramente mais recetivo à ideia de desglobalização e de reconstrução de circuitos curtos de produção e distribuição, simultaneamente mais democráticos e menos vulneráveis.



Crónica de Alexandre Abreu

Doutorado em Economia na Universidade de Londres



1. Metabolismo e pandemia. Num livro de 2005 intitulado The Monster at our Door, o escritor e ativista norte-americano Mike Davis anteviu com notável presciência o cenário de pandemia que estamos atualmente a viver, da impreparação dos sistemas de saúde à rapidez com que se alastraria pelo globo. Não acertou no microorganismo (trata-se de um coronavírus e não de uma estirpe do vírus da gripe), mas acertou, entre muitas outras coisas, na possível origem geográfica. Essa previsão assentava na constatação das transformações ecológicas em curso em certas regiões da China contemporânea, caracterizadas pela concentração em grande proximidade de muitos milhões de seres humanos e muitos milhões de outros animais em instalações de pecuária industrial e nos chamados ‘mercados vivos’, criando condições favoráveis para que os vírus se recombinem e saltem a barreira das espécies com mais frequência.


Todos os principais surtos com potencial pandémico com que nos temos confrontado nas últimas décadas, do HIV e do ébola às várias estirpes da gripe e síndromes respiratórios agudos, têm sido zoonoses – doenças que saltam de outras espécies para os seres humanos. E em praticamente todos eles é possível identificar algum tipo de nexo causal entre a ocorrência da pandemia e perturbações do equilíbrio ecológico com origem humana: projetos de rizicultura na Índia colonial britânica na origem das epidemias de cólera que viriam a vitimar dezenas de milhões de pessoas nos últimos dois séculos; a penetração colonial da floresta equatorial africana na origem do salto do HIV para a espécie humana; a destruição acelerada de habitats florestais em vários partes do continente africano nas últimas décadas na origem da cada vez maior frequência de surtos de ébola e outras febres hemorrágicas. As pandemias não são um castigo divino nem são provocadas pelo 5G, mas são propiciadas diretamente pela ação humana sobre o ambiente, da desflorestação à produção animal intensiva.


Esta relação estreita entre as perturbações do metabolismo dos sistemas do planeta e a ocorrência de pandemias é apenas mais uma das dimensões da crise ambiental com que nos confrontamos. Vem juntar-se a muitas outras: a extinção em massa de espécies animais e vegetais; a destruição de habitats, da floresta tropical às zonas húmidas e recifes de coral; a poluição da atmosfera, oceanos, rios e lagos; a erosão e esgotamento dos solos; a acidificação dos oceanos; e, a mais óbvia e ameaçadora de todas, a crise climática. Todas elas exigem que repensemos de forma fundamental e urgente a relação entre as atividades de produção e reprodução material das nossas sociedades e o equilíbrio dos sistemas naturais em que estamos inseridos.



2. Crise e armadilhas. A crise pandémica atual tem tido e vai continuar a ter implicações importantes e potencialmente contraditórias no que diz respeito à emergência climática e ambiental de uma forma mais geral. A um primeiro nível, o aparecimento de uma nova ameaça existencial global urgente veio desviar as atenções da ameaça existencial preexistente e não menos importante, mas relativamente menos imediata, das alterações climáticas. Acresce que as restrições à mobilidade e concentração de pessoas das últimas semanas vieram dificultar significativamente a organização de iniciativas ativistas numa altura em que o movimento global pela justiça climática vinha ganhando um protagonismo e capacidade de mobilização cada vez maiores. Tudo isto veio colocar desafios inesperados, com que este movimento terá de saber lidar de foma inteligente e criativa.


A um segundo nível, a suspensão de inúmeros processos produtivos e sociais em todo o mundo ao longo das últimas semanas tem constituído, como muita gente já assinalou, uma experiência extraordinária em torno do impacto das atividades humanas. Tanto na China como no Norte de Itália, o impacto das medidas de confinamento na redução das emissões de gases com efeitos de estufa é claramente identificável, inclusive através de imagens de satélite. De muitas cidades em todo o mundo chegam relatos sobre a melhoria da qualidade do ar ou o reaparecimento de pássaros e outros animais. A queda das emissões de carbono na China entre o início de fevereiro e meados de março foi de cerca de 18% - o equivalente a metade das emissões anuais do Reino Unido. Na União Europeia, uma estimativa dos últimos dias aponta para que as emissões totais de equivalente de CO2 possam reduzir-se em 400 milhões de toneladas em 2020, o que representa por si só perto de 40% da meta de redução cumulativa anunciada para o período 2017-2030. Estas reduções podem vir até a ser maiores, caso o confinamento seja mais prolongado e a recessão mais profunda do que estas estimativas consideram. Mas também podem ser rapidamente revertidas se e quando a atividade económica retomar, especialmente se, como começam já a apelar algumas vozes, esta retoma não olhar a meios para promover o restabelecimento a todo o custo do status quo anterior, descartando todas as considerações ambientais.


Este contexto aponta para a existência de duas armadilhas com que teremos de nos confrontar nos próximos tempos: de um lado, a visão anti-humanista que na sua versão extrema encara os seres humanos como o verdadeiro vírus do planeta e que encara o desemprego e o empobrecimento generalizados como um preço aceitável a pagar pela redução do impacto humano sobre os sistemas ambientais. Do outro lado, a visão produtivista e negacionista da crise ambiental, animada pelo argumento do imperativo de ultrapassar aquela que vai seguramente ser a maior recessão em muitas décadas. Navegar entre estas duas armadilhas vai exigir consistência na reflexão e na ação em torno de uma visão alternativa, ecossocialista, que permita conciliar a racionalidade ecológica com a promoção do bem-estar de todos e de cada um.




3. Espaços de oportunidade. A crise pandémica atual não traz só desafios e ameaças: vai também criar oportunidades, tanto pelo impacto que vai ter sobre as perceções coletivas e o discurso público, como pelos imperativos de política que vai colocar. Mostrou já, e vai continuar a mostrar, a insuficiência e irracionalidade das soluções mercantis como mecanismos de coordenação coletiva quando estão em causa aspetos fundamentais da nossa vida em comum, como a prestação de cuidados de saúde, o desenvolvimento de vacinas e medicamentos ou a garantia de acesso a bens e serviços básicos como a alimentação, a água, a habitação ou a energia. Tem demonstrado a interdependência fundamental que caracteriza as sociedades humanas e a forma como a pobreza e a precariedade de muitos é um problema para todos. Tem revelado como a globalização capitalista da produção e da finança é nociva não só para a justiça social e para a democracia como também para a resiliência dos sistemas produtivos e até do ponto de vista das respostas médico-sanitárias. E vai implicar intervenções estatais com vista a limitar a recessão a uma escala ainda maior do que aquando da Grande Recessão da década passada (embora esteja ainda longe de ser claro quem vai ser apoiado e quem vai pagar a fatura), desacreditando ainda mais as teses da capacidade autorregulatória dos mercados.


Surgirão, por isso, novos espaços de oportunidade, que poderão ser aproveitados para a afirmação e construção de alternativas. O mundo pós-pandémico será seguramente mais recetivo à ideia de desglobalização e de reconstrução de circuitos curtos de produção e distribuição, simultaneamente mais democráticos, mais sustentáveis e menos vulneráveis. Terá certamente mais presente a importância de serviços públicos robustos, universais e gratuitos, desde logo na saúde mas também noutras esferas da vida coletiva. Perceberá melhor a importância de reverter a erosão da segurança laboral e social associada ao neoliberalismo e à gig economy, para bem não apenas dos que são diretamente afetados mas de toda a sociedade. Dará com certeza mais valor às ideias de comunidade, de coesão e de proteção contra a insegurança. Assim saibamos aproveitar esses espaços, talvez isso permita transformar o necessário em possível e o possível em real.

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